Precisamos falar sobre tudo, por Martha Medeiros
Assassinos em série fazem parte de uma única sociedade que precisa falar sobre aquela parte da gente que fica entrincheirada, recusando-se a fazer parte do todo
Li alguns livros muito bons este ano (desde os brilhantes Homem Comum, de Philip Roth, e Na Praia, de Ian McEwan, até a estréia promissora da carioca Maria Helena Nascimento, em Olhos Baixos), mas o que me deixou com os quatro pneus arriados foi Precisamos Falar Sobre o Kevin, de Lionel Shriver. Um livro obrigatório por inúmeras razões, mas vou tentar salientar duas ou três.
Pra começar, o tema é macabramente atual: a rotina de massacres em escolas (principalmente nos Estados Unidos) em que adolescentes matam colegas e professores sem motivo aparente. Aliás, nada é mais preguiçoso do que procurar um motivo aparente.
Talvez aí resida o melhor do livro: ele rejeita as versões oficiais, aquelas que engolimos facilmente, que nos descem sem esforço. Quem narra a história é a mãe do assassino, um garoto de 16 anos que nasceu perverso por natureza, mas que chegou às raias da insanidade ao atirar premeditadamente em 11 colegas escolhidos a dedo para morrer. Se fosse um livro como os outros, a mãe faria um mea-culpa choroso, dizendo que precisou trabalhar fora e com isso a educação do filho ficou descuidada. Ou iria falar sobre más influências. Ou então defender que ele foi excluído pela sociedade por ser asiático, ou negro, ou gay ou simplesmente por ser mais um deprimido, mas isso seria tão rasteiro quanto sonolento. E o livro é o oposto: é uma bofetada a cada página. Nunca gostei de apanhar, mas esse livro me nocateou e ainda terminei dizendo "quero mais".
O relato não é condescendente com nada nem com ninguém. A mãe do garoto relembra passagens da sua alegre vida de recém-casada, da sua relutância em engravidar, do susto com o nascimento daquela criança que ela não identificava como um presente dos céus, da enorme dificuldade em contornar conflitos, na distância que surgiu entre ela e o pai do bebê e do incômodo reconhecimento de que formar uma família feliz não é tão simples como anunciam por aí. Só que a autora vai além da desconstrução do sublime. Ela desconstrói a todos nós, fazendo vir à tona nossa incompetência como controladores de vôos de nossos filhos. Nossas orientações são bem-intencionadas, mas não onipotentes. Nosso amor é necessário, mas nem sempre é bem compreendido ou bem transmitido. Nossos cuidados podem vir a ser infrutíferos, nossas palavras podem não adiantar, nossas atitudes talvez não sirvam como exemplo. Existe algo tão influente quanto tudo isso: a nossa dor interna. Ela contamina, ela comunica, ela desgraçadamente também educa - ou deseduca.
E tem ainda essa nossa sociedade doentia, que transforma qualquer ato estapafúrdio em espetáculo, que não dá chance aos invisíveis, que derruba antigos valores éticos e morais sem os substituir por algo que valha a pena. Hoje a inversão é total: um pequeno gesto de bondade passa a ser assombroso, enquanto que a violência é de casa, virou um tédio.
O livro é violento não pela transcrição de cenas sanguinárias - quase não há - mas pela brutalidade dos pensamentos e diálogos. Bruto no sentido de honesto, de trazer à tona uma verdade nua, selvagem, sem retoques. O livro é brutal porque implode as fachadas. Nada fica de pé.
O leitor que for igualmente honesto consigo mesmo, que tiver o mínimo de conhecimento psicológico, que estiver disposto a enfrentar sua fragilidade da mesma maneira que se vangloria de suas virtudes, vai acusar o golpe. Óbvio que não estamos criando assassinos em série, eles ainda são casos isolados, mas fazemos parte de uma única sociedade que precisa, sim, falar sobre o Kevin, falar sobre o João, falar sobre nossos filhos e sobre nós mesmos, entendendo por "nós" aquela parte da gente que fica entrincheirada, se recusando a fazer parte do todo. Mas que, querendo ou não, faz.
Martha Medeiros
Li alguns livros muito bons este ano (desde os brilhantes Homem Comum, de Philip Roth, e Na Praia, de Ian McEwan, até a estréia promissora da carioca Maria Helena Nascimento, em Olhos Baixos), mas o que me deixou com os quatro pneus arriados foi Precisamos Falar Sobre o Kevin, de Lionel Shriver. Um livro obrigatório por inúmeras razões, mas vou tentar salientar duas ou três.
Pra começar, o tema é macabramente atual: a rotina de massacres em escolas (principalmente nos Estados Unidos) em que adolescentes matam colegas e professores sem motivo aparente. Aliás, nada é mais preguiçoso do que procurar um motivo aparente.
Talvez aí resida o melhor do livro: ele rejeita as versões oficiais, aquelas que engolimos facilmente, que nos descem sem esforço. Quem narra a história é a mãe do assassino, um garoto de 16 anos que nasceu perverso por natureza, mas que chegou às raias da insanidade ao atirar premeditadamente em 11 colegas escolhidos a dedo para morrer. Se fosse um livro como os outros, a mãe faria um mea-culpa choroso, dizendo que precisou trabalhar fora e com isso a educação do filho ficou descuidada. Ou iria falar sobre más influências. Ou então defender que ele foi excluído pela sociedade por ser asiático, ou negro, ou gay ou simplesmente por ser mais um deprimido, mas isso seria tão rasteiro quanto sonolento. E o livro é o oposto: é uma bofetada a cada página. Nunca gostei de apanhar, mas esse livro me nocateou e ainda terminei dizendo "quero mais".
O relato não é condescendente com nada nem com ninguém. A mãe do garoto relembra passagens da sua alegre vida de recém-casada, da sua relutância em engravidar, do susto com o nascimento daquela criança que ela não identificava como um presente dos céus, da enorme dificuldade em contornar conflitos, na distância que surgiu entre ela e o pai do bebê e do incômodo reconhecimento de que formar uma família feliz não é tão simples como anunciam por aí. Só que a autora vai além da desconstrução do sublime. Ela desconstrói a todos nós, fazendo vir à tona nossa incompetência como controladores de vôos de nossos filhos. Nossas orientações são bem-intencionadas, mas não onipotentes. Nosso amor é necessário, mas nem sempre é bem compreendido ou bem transmitido. Nossos cuidados podem vir a ser infrutíferos, nossas palavras podem não adiantar, nossas atitudes talvez não sirvam como exemplo. Existe algo tão influente quanto tudo isso: a nossa dor interna. Ela contamina, ela comunica, ela desgraçadamente também educa - ou deseduca.
E tem ainda essa nossa sociedade doentia, que transforma qualquer ato estapafúrdio em espetáculo, que não dá chance aos invisíveis, que derruba antigos valores éticos e morais sem os substituir por algo que valha a pena. Hoje a inversão é total: um pequeno gesto de bondade passa a ser assombroso, enquanto que a violência é de casa, virou um tédio.
O livro é violento não pela transcrição de cenas sanguinárias - quase não há - mas pela brutalidade dos pensamentos e diálogos. Bruto no sentido de honesto, de trazer à tona uma verdade nua, selvagem, sem retoques. O livro é brutal porque implode as fachadas. Nada fica de pé.
O leitor que for igualmente honesto consigo mesmo, que tiver o mínimo de conhecimento psicológico, que estiver disposto a enfrentar sua fragilidade da mesma maneira que se vangloria de suas virtudes, vai acusar o golpe. Óbvio que não estamos criando assassinos em série, eles ainda são casos isolados, mas fazemos parte de uma única sociedade que precisa, sim, falar sobre o Kevin, falar sobre o João, falar sobre nossos filhos e sobre nós mesmos, entendendo por "nós" aquela parte da gente que fica entrincheirada, se recusando a fazer parte do todo. Mas que, querendo ou não, faz.
Martha Medeiros
No amor de Cristo, que nos une acima das diferenças,
Alice
Alice
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