O que um autor de ficção científica ensina sobre a vida.
LUÍS ANTÔNIO GIRON
O escritor americano Ray Bradbury tem 91 anos. Ele devotou sua longa carreira à ficção científica. É um gênero considerado menor pelos críticos universitários - os “scholars”, um termo que soa pejorativo, mas que define bem a atividade daqueles que aplicam teorias a textos literários. Estamos tão contaminados pelas teorizações que a própria expressão “texto literário” provém de algum “scholar”. Enfim, a ficção científica constitui um ramo da literatura fantástica. E, apesar do nariz torcido da crítica, a fantasia tem tomado o lugar de outros tipos de ficção entre os leitores. É um fenômeno peculiar, pois passamos os dois últimos séculos mergulhados em romances, contos e novelas realistas. Os críticos incutiram nos leitores a ideia de que só os textos baseados na realidade formam a grande arte. A fantasia ficava para as crianças.
Até que apareceram o britânico C.S. Lewis, o argentino Jorge Luis Borges, o brasileiro José J. Veiga (hoje esquecido) e Ray Bradbury, entre outros autores que demonstraram que a realidade é bem maior do que aquela que os acadêmicos nos enfiaram goela abaixo. Basta consultar as listas de mais vendidos, os rankings de vendas ou as bilheterias para constatar que a fantasia está em moda no cinema, nos livros, nos videogames, na internet. Por causa dessas viradas da história da cultura, o escapismo talvez tenha se tornado a verdadeira realidade.
Por isso, está na hora de prestar atenção ao que os autores fantásticos têm a dizer. Bradbury foi esnobado pelos críticos desde seu primeiro livro, a coletânea de contos Crônicas marcianas, de 1950. Um ano depois, escreveria outro livro desprezado, Fahrenheit 451, que em 1966 foi adaptado ao cinema pelo diretor francês François Truffaut e trouxe a fama ao autor. Em 60 anos de carreira, Bradbury já escreveu mais de 500 histórias. Ele tem muitos leitores no Brasil, mas aposto que poucos sabiam da faceta ensaística e poética de Bradbury. A editora LeYa lança agora no Brasil O Zen e a arte da escrita (168 páginas, tradução de Adriana de Oliveira, R$ 19,90), um pequeno volume publicado originalmente em 1990 que reúne as reflexões e poemas de Bradbury sobre viver e escrever, viver da escrita e escrever sobre a vida. Este é o resumo grosseiro do que o livrinho contém. Na realidade, os onze textos reunidos compõem um manual de orientação a quem queira começar a vida de escritor, mas também a todo aquele que pretenda viver com plenitude. Um manual de autoajuda? Bem mais do que isso, a coletânea revela o que se passa no cérebro de um dos maiores fantasistas do século XX. Um fantasista que elaborou aquela que para mim é a maior declaração de amor aos livros nestes tempos tecnológicos: em Fahrenheit 451, ele retrata o futuro do planeta, em que a sociedade de controle atingiu um tal ponto de excelência, que os livros são proibidos por conter mensagens subversivas e sediciosas à ordem. Nos anos 60, e nos países dominados por regimes totalitários como este aqui, Bradbury enviava uma mensagem de resistência. Tenho carinho por esse livro que confirmou que o amor à “vida inútil” contida nos livros nunca decepciona. Na biblioteca da casa de meus pais, no Rio Grande do Sul dos anos 70, eu me sentia fazendo parte dos “selvagens” que decoravam os livros e, com isso, afrontavam o poder – no caso, a abominável ditadura brasileira. Tive a sorte de ter nascido com uma grande biblioteca em casa. Tomei gosto por escrever e me tornar escritor (afinal de contas, jornalista é escritor ou não é?) com livros provocadores como os de Bradbury.
Para mim, portanto, é emocionante ler O Zen e a arte da escrita. É um guia que talvez tivesse servido para mim quando mais jovem. Mas, como dizia Charlie Chaplin, a vida é muito curta para que alguém se considera um profissional. Eu parafraseio: a vida é curta demais para alguém se considerar realmente maduro. Os livros são essenciais em qualquer idade, pois obviamente prolongam a vida e o que pensamos dela. O volume recém-publicado de Bradbury parece um monólogo que dá continuidade à declaração de amor de Fahrenheit 451. Nele, Bradbury pretende ensinar “como escalar a árvore da vida, apedrejar a si mesmo e descer sem quebrar nenhum osso nem o espírito”, como ele intitula o prefácio. Bradubry conta que colecionou histórias em quadrinhos, apaixonou-se por carnavais e feiras e então começou a escrever. A pergunta que se faz e que gerou o livro é a seguinte: o que escrever nos ensina?
Bradbury arrola duas razões. Primeiro, que escrever nos faz lembrar que estamos vivos e que viver e trabalhar é uma dádiva: “Então, embora nossa arte não possa, por mais que desejemos, livrar-nos da guerra, da privação, inveja, cobiça, velhice ou morte, pode nos revitalizar no meio disso tudo”. Segundo, que escrever é sobreviver, como qualquer outro trabalho. Ele aconselha que o escritor faça como o pianista, e pratique todos os dias. “Se você não escrever diariamente, os venenos se acumularão e você começará a morrer, ou enlouquecer, ou ambos”. Ele diz que fica ansioso no primeiro dia em que nada escreveu. Depois vem a tremedeira e a quase-demência. “Uma hora de escrita é como um tônico”, afirma. “Fico em pé, correndo em círculos e gritando por um par de sapatos limpos.” A escrita é o bote salva-vidas quando a morte ameaça. “Isso significa que escrever cura. Não por completo, naturalmente. Você nunca vai tirar seus pais do hospital ou seu melhor amor do túmulo”.
Evidentemente esse tipo de afirmação cala mais fundo em escritores do que em outras pessoas. Mas o que Bradbury ensina pode ser estendido a qualquer atividade. Escrever, como atuar em qualquer outra área, é se arriscar. Quem fizer, isso, diz, vai descobrir uma nova definição, uma nova palavra para trabalho: “E a palavra é ‘amor’”. Danem-se os escolásticos. O Zen do título é uma brincadeira que ele fez com o método oriental, que se baseia em “koans”, em pequenas lições. Ele explica, num artigo de 1973 (que dá título ao volume), que para escrever é preciso considerar três itens: “trabalho”, “relaxamento” e “não pense!” Trabalhar é um prazer, relaxar uma necessidade e não pensar, uma forma de fazer com que o texto venha até você, e não você correr atrás dele. Ele convida a gente a pensar sobre o mundo. “Você, o prisma, medida da luz do mundo: ela brilha através da sua mente para lançar uma leitura espectrosópica no papel branco, uma leitura diferente da que qualquer outro poderia lançar. Deixe o mundo brilhar através de você. Lance a luz do prisma, calor branco sobre o papel. Faça a sua própria leitura espectroscópica individual”. A única história que existe no mundo é a sua, porque o ser humano é único. Não importa o gênero. O importante é compreender que toda história é legítima, porque escrita por um indivíduo, com sua verdade particular.
Ao longo de sua reflexão sobre o próprio trabalho, Bradbury formulou um lema que serve para mim que sou admirador dele, e para você que talvez leia esse gênio ou não que fez ficção-cientifica e foi desprezado pela crítica por seu suposto escapismo, chamado Ray Bradbury: “Toda manhã, pulo da cama e piso num campo minado. O campo minado sou eu. Depois da explosão, passo o resto do dia juntando os pedaços. Agora é a sua vez. Pule!”
Luís Antônio Giron Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
Fonte: Revistaepoca.globo.com
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